Hoje trago-vos uma entrevista a Marlene Ferraz, autora do romance As Falsas Memórias de Manoel Luz, da editora Minotauro.
Curiosos para conhecer um pouco mais desta autora? Então fiquem por aí.
Jardim de Mil Histórias: Como surgiu o seu gosto pela escrita?
Marlene Ferraz: «Depois do espanto pela leitura.
Seria uma criança muito metida em contemplações, incomodada com o sofrimento evitável
nos homens e nos bichos: ficava exageradamente comovida quando me confrontava
com um pássaro ferido por um chumbo, uma borboleta com as asas gastas pela
curiosidade das crianças ou um cão tão magro que poderia contar-se os ossos. E
toda a violência entre homens e homens. Os livros, companheiros de horas
intermináveis, resgatavam-me para outras realidades, também duras, improváveis,
mas carregadas de ilusão e esperança. Como um escafandro. Ou um outro
compartimento de oxigénio. Conviver com o sofrimento pede uma carga suficiente
de ilusão.»
J. M. H.: A Marlene é formada em Psicologia. Como isso
influencia a sua escrita?
M. F.: «O ofício da Psicologia obriga ao
exercício de nos descentrarmos o mais possível da criatura que somos para nos
focarmos no outro: há um desprendimento dos nossos posicionamentos (leia-se
enviesamento) e uma aceitação incondicional da pessoa que temos diante. A
vulnerabilidade acaba por ser a matéria de apreciação e produção: receber, com
a maior transparência, as fragilidades do outro e ensaiar novas formas de ver a
realidade que incomoda, como se tivéssemos em mãos um caleidoscópio. É provável
que esta proximidade com o sofrimento e a renovação, neste processo infinito de
redenção, esteja nas entrelinhas das (minhas) narrativas.»
J. M. H.: Já recebeu diversos prémios literários. Como reagiu
a este reconhecimento?
M. F.: «Os prémios literários acabam por
ampliar a coragem que precisamos para publicar: num mercado livreiro tão
intimidante, em que um número infinito de livros chegam continuamente às
livrarias, com listas dos mais vendidos e etiquetas de prémios internacionais, mais
todos os livros espantosos doutros tempos, só com uma dose mínima de loucura (e
coragem) para nos entregarmos a um desafio tão privado mas também comercial. É
uma realidade paradoxal. Lembro-me de ser mais menina e ouvir um editor de
maior grandeza dizer, numa conversa paralela, na espantosa livraria Centésima
Página: neste momento, só publicamos de
Mia Couto para cima. E eu, de coração (ou ingenuidade) esmagado, comecei a
medir-me aos palmos. Nunca poderia chegar ao tamanho do (meu) encantador Mia
Couto.»
J. M. H.: O seu mais recente livro, As Falsas Memórias de
Manoel Luz, é uma biografia que nos fala de flores e livros. Em que se inspirou para escrever esta
história?
M. F.: «No primeiro, A Vida Inútil de José
Homem, andei pelas memórias da guerra colonial, como se precisasse de recriar o
cenário do Estado Novo na minha cabeça: para quem veio ao mundo dos vivos já em
tempos (aparentemente) democráticos, uma guerra em território ultramar parece
apenas matéria cinematográfica. Neste segundo, As Falsas Memórias de Manoel
Luz, acabei por alinhavar uma narrativa no seguimento temporal: atravessamos a
Revolução de Abril, entre as metáforas dos livros e das flores, já que o
livreiro se levanta entre dois homens de inspirações muito opostas, o senhor
Prudente, de grandezas e luxos, muito interessado no lucro e no poder, e o
senhor Luz, de simplezas e afectos, dedicado ao ofício de floreiro e cuidador
das flores e dos outros, a simbolizar esta bipolaridade que vivemos dentro e
fora do corpo, o bem e o mal, o capitalismo e a sustentabilidade social, o amor
e o medo (e continuaríamos por linhas completas).»
J. M. H.: O que mais gosta neste processo de escrita?
M. F.: «O exercício de compor as palavras, numa
ordem particular, com musicalidade e simbolismo. E a criação de homens,
mulheres e bichos, com as suas estranhezas e imperfeições, num grito de
liberdade pela transparência, sem a intenção (artificial) de parecermos
perfeitos por fora apesar dos buracos de vulnerabilidade por dentro.»
J. M. H.: Quais as suas grandes referências enquanto
escritora?
M. F.: «Agrada-me mais a palavra encontro: e tenho
tido encontros tão espantosos (e os que virão, ainda). José Saramago. Herberto
Helder. Gabriel García Márquez. Jorge Luís Borges. Julio Cortázar. Truman
Capote. Iréne Némirovsky. Franz Kafka. Tchékhov. Dostoiévski. E uma mão de
nomes mais recentes. Mia Couto. Gonçalo M. Tavares. Herta Muller. Han Kang (nos
meus braços, agora). Teria de espreitar a minha estante para continuar esta
biografia de encontros.»
J. M. H.: Ouvimos muitas vezes os autores afirmarem que o
processo de escrita concentra-se em 90% de trabalho e 10% de talento. Concorda?
M. F.: «Tempo é a palavra principal (para
mim). Tempo para contemplar, para dialogar, para sentir, para perguntar, para
viajar (por dentro). E para escrever, depois. Nunca penso em esforço ou talento
mas na entrega temporal a um exercício que nos obriga a entrar numa cápsula
depois dum intervalo de contemplações.»
J. M. H.: De todos os livros que já escreveu qual deles
melhor define a sua escrita?
M. F.: «Mesmo o verbo escrever é dinâmico
e, aparentemente, a minha escrita tem vindo a transformar-se sem que a minha
cabeça (ou mãos) tenha consciência deste processo de mudança. Provavelmente,
com o tempo (e todos os instantes de dúvida e experimentação e leitura), é a
minha pessoa que tem vindo a metamorfosear-se, assim as borboletas, e essa renovação
na forma de dentro acaba, inevitavelmente, por se diluir na forma da escrita.»
J. M. H.: Enquanto leitora o que gosta mais de ler? E o
que não gosta de ler?
M. F.: «Leio tudo. Se estiver numa fila de
espera, posso até ler a tabela nutricional do produto que tenho em mãos ou a
receita de uma salada improvável na revista emprestada. Ler é entrar num mundo
novo, é despertar ideias, levantar os pés do chão... é escapar ao tédio. Há
tantos lugares inóspitos no dia a dia. A espera num consultório. A espera numa
repartição de finanças. A espera para renovar o cartão de cidadão. Os livros
são territórios incríveis à nossa espera. Basta abrir uma página, pode ser ao
acaso, e o milagre acontece.»
J. M. H.: Qual o livro da sua vida?
M. F.: «A lista poderia ser
comprida, conforme o tempo e o lugar. Tantos os livros que me têm espantado,
confortado, desafiado, até incomodado. Mas, a revisar a minha narrativa de
vida, diria que o primeiro (grande) livro a criar em mim esse espanto pelo
poder da escrita terá sido O Memorial do Convento, de José Saramago, leitura
obrigatória (e como agradeço) no ensino secundário e ainda hoje invento na
cabeça a passarola do padre Bartolomeu e o poder da Blimunda que pode ver por
dentro.»
J. M. H.: Que projectos literários tem para o futuro?
M. F.: «Quando acabo um livro, a sentir-me
desocupada de matéria, aviso sempre que pode ter sido o último. Analiso o meu
tempo futuro e planeio usar mais horas noutros projectos, como o voluntariado e
a protecção animal. Mas depois começam os primeiros cenários a virem à cabeça.
Tento abafar as ideias que despontam mas o processo de instalação das novas
companhias (leia-se personagens) está já num estado irreversível. Tenho uma
história a fazer-se dentro de mim. Veremos o que o tempo traz.»
Marlene, muito obrigada por esta entrevista.
Nota: Opinião do livro As Falsas Memórias de Manoel Luz, de Marlene Ferraz em breve.
Boas leituras.
Olá, Isa!
ResponderEliminarAmei a entrevista! Tenho os dois livros que a autora refere na estante, à minha espera e sei que a espera vai valer a pena. Sei mesmo!
Muito obrigada por este bocadinho, que deu para conhecer e gostar ainda mais de Marlene Ferraz!
Beijinhos!
Olá Ana,
EliminarQue bom que gostaste. É um espaço que vai crescer cada vez mais aqui no blogue :)
Depois quero saber a tua opinião.
Um beijinho.